Isaquias Queiroz e Erlon de Souza Silva: se atualmente o Brasil é reconhecido no mundo da Canoagem Velocidade deve isso às conquistas dessa dupla. Desde 2013, Isaquias faz história com vitórias inéditas em Mundiais e Olimpíada. Na Rio-2016, inclusive, ele se transformou no brasileiro com mais medalhas em uma única edição olímpica (duas pratas, no C-1 1000 e no C-2 1000, e um bronze, no C-1 200). Erlon esteve nas duas últimas Olimpíadas e também possui uma invejável coleção de medalhas. Por trás da “explosão” dessa dupla existe um personagem simbólico. O técnico espanhol Jesús Morlán, que assumiu o comando da equipe nacional em 2013.
Considerado o maior técnico da modalidade no mundo, Morlán revolucionou o esporte no Brasil. Mas, depois dos Jogos Olímpicos de 2016, ele descobriu que tinha um tumor no cérebro, um câncer que acabou tirando a vida dele em novembro de 2018. Era o fim de um trabalho que rendeu três medalhas olímpicas e 10 mundiais à seleção brasileira. Passado o luto inicial pela perda do técnico, a Confederação Brasileira de Canoagem (CBCa) oficializou o então auxiliar técnico Lauro de Souza Júnior como o novo comandante da equipe. É com ele que a Agência Brasil conversa para saber um pouco mais sobre o desafio de substituir uma das lendas do esporte, a projeção para os Jogos de Tóquio, novos nomes do esporte no mundo e muito mais.
Agência Brasil: O senhor ter sido colocado como treinador principal depois do falecimento do Jesus era um desejo dos próprios atletas. Isso o ajudou a dar andamento aos trabalhos?
Lauro de Souza Jr.: Mantivemos a metodologia vitoriosa, que vem trazendo resultados expressivos nos últimos anos. A equipe já está acostumada com o trabalho. Todos já estavam ambientados com o Morlán e não precisaram fazer maiores mudanças. Isso foi muito importante para todos nós.
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Agência Brasil: Como foi a experiência de trabalhar com o Jesús?
Lauro de Souza Jr.: Foi um privilégio. O Jesús foi um dos maiores treinadores da canoagem mundial. Era uma pessoa muito fechada e tinha muito poucos amigos. Eu posso dizer que fui uma das pouquíssimas pessoas que tiveram a chance de ter essa abertura com ele para dividir todo o conhecimento. Mudou a minha vida profissional.
Agência Brasil: Muitas coisas do trabalho que vinha sendo feito seguem sendo utilizadas? Quais foram as principais mudanças?
Lauro de Souza Jr.: A metodologia é praticamente a mesma. Programação e rotina estão quase iguais. Mas é óbvio que tem algumas alterações. As principais estão na forma de remar e na maneira de competir. Não só pelo fato de ele não estar mais aqui, mas agora somos uma equipe muito mais amadurecida também. O Isaquias e o Erlon têm uma visão diferente das coisas. Isso tudo traz mudanças.
Agência Brasil: O Morlán era um pai para todos. As medalhas a serem conquistadas em Tóquio serão dedicadas a ele com certeza, né?
Lauro de Souza Jr.: Nós vamos trabalhar muito para conquistar duas medalhas em Tóquio. E a gente confirmando essas conquistas, com certeza, elas serão dedicadas ao Jesús. Na carreira dele, foram oito finais olímpicas e oito medalhas. Então, que em Tóquio a gente possa somar 10 medalhas em 10 finais, porque o Jesús faz parte desse ciclo olímpico. Mesmo não estando presente fisicamente com a gente nos últimos dois anos, ele está junto com a nossa equipe. E vamos brigar muito para chegarmos ao pódio por ele também.
Agência Brasil: Você falou em uma entrevista que o Morlán parecia estar pressentindo que algo ruim iria acontecer. Ele estava te passando mais responsabilidades. Como foram esses dias?
Lauro de Souza Jr.: Ele estava bem consciente da doença que estava enfrentando. Mas confiante e lutando muito. Ele sabia que a qualquer momento poderia acontecer uma fatalidade. Nos últimos dois meses, parecia que ele já estava percebendo que algo não ia bem. Me passou, sim, muito mais coisas. Na verdade, isso já acontecia há algum tempo. O Jesús fazia um tratamento forte de quimioterapia. E muitas vezes ele não conseguia estar presente nos treinos.
Agência Brasil: Vocês decidiram não dar férias para ninguém, mesmo com o adiamento dos Jogos Olímpicos e com o cancelamento de várias competições. Por quê?
Lauro de Souza Jr.: Nós precisamos manter o nosso planejamento. E manter os atletas ativos. A Olimpíada foi adiada em um ano, mas passa muito rápido. Não podemos perder o foco nos Jogos, ele tem que se manter vivo na motivação dos atletas. Para a parte física também é muito importante. Mas é claro que fizemos algumas alterações. A gente não vai precisar atingir um nível de preparação tão intenso como se a Olimpíada fosse esse ano. Mas manter a equipe ativa é fundamental.
Agência Brasil: No que o adiamento dos Jogos acabou afetando na preparação da equipe?
Lauro de Souza Jr.: Atrapalhou não só a gente, mas todas as equipes de todas as modalidades. Mas eu procuro buscar o lado positivo. É fato que a gente vinha muito bem, mas também evoluímos bastante desde o Mundial do ano passado, quando conseguimos uma medalha de ouro e um bronze. E tenho certeza de que vamos crescer ainda mais nesse período. Claro que pode aparecer alguém até o ano que vem. Nós sabemos que evoluímos, mas os outros também estão trabalhando e crescendo. Só que, inicialmente, a visão é positiva do trabalho que vem sendo feito.
Agência Brasil: O teu primeiro desafio como comandante da seleção foi na definição dos barcos que os brasileiros usaram no Mundial da Hungria do ano passado. Como acontece essa decisão? Quais são os principais pontos procurados por vocês?
Lauro de Souza Jr.: Essa foi uma decisão que já vinha sendo analisada há algum tempo pelo Jesús, em 2018. No Mundial de Portugal daquele ano, ele me chamou para uma reunião com a fabricante dos barcos. Depois queria que eu fosse a Portugal para ajudar nos testes e no desenvolvimento desse novo modelo. E, como ele não ia poder estar presente por conta do tratamento, conversamos muito, fomos evoluindo nos estudos sobre o melhor modelo e eu fui, no final de 2018, para Portugal com o Isaquias e o Erlon. A gente participou de todos os testes e assim que o equipamento ficou pronto, em abril de 2019, recebemos os barcos no Brasil. Fiz uma avaliação de possíveis ajustes na técnica da remada. No individual, com o Isaquias, a gente conseguiu chegar em uma forma técnica muito favorável a ele.
Agência Brasil: O aparecimento dessa dupla de chineses (Hao Wang e Hao Liu) que levou o ouro no C-2 1000 no Mundial no ano passado sem estar entre os favoritos indica o quê?
Lauro de Souza Jr.: Não foi uma surpresa tão grande porque a China tem tradição nessa prova. Foram campeões olímpicos em Atenas-2004 e em Pequim-2008. Nós também já conhecíamos esses atletas. Isso tudo mostra que, para Tóquio, não tem favoritos. A nossa modalidade é muito dinâmica. De um ano para o outro, muitas coisas podem mudar. São muitas equipes fortes.
Agência Brasil: O Jesús sempre falava que a preocupação deveria ser no próprio treino. Fazer o melhor possível para chegar bem nas competições, independentemente dos adversários. É isso mesmo?
Lauro de Souza Jr.: A gente tem de ser melhor a cada dia. Esse é o grande desafio. O nosso treinamento e a nossa rotina podem ser controlados. Já os adversários não podem ser controlados por nós. Então, a grande questão é buscar a excelência no treinamento.
Agência Brasil: Como está o trabalho que dá suporte à nova geração para substituir o Isaquias Queiroz e o Erlon de Souza?
Lauro de Souza Jr.: Tenho um desejo enorme de colocar o Brasil como uma das potênciais da canoagem mundial. Atualmente temos dois grandes atletas, o Isaquias e o Erlon. E, atrás deles, temos uma lacuna muito grande. Iniciamos um trabalho com as categorias de base na cidade de Capitólio, em Minas Gerais. Eu procuro dar todo o apoio para eles. Temos também dois atletas jovens que estão trabalhando com a equipe principal aqui em Lagoa Santa (MG). É difícil substituir atletas tão talentosos quanto o Isaquias e o Erlon. E não existe outra alternativa melhor, que não seja o trabalho na base.
Edição: Sergio du Bocage