Profissionais de saúde contam a exaustão e a difícil tarefa de lidar com pacientes infectados e em evolução de piora
Christiano Antonucci
Profissionais da linha de frente do combate à Covid-19, que já matou mais de 6 mil em MT; médicos, enfermeiros fisioterapeutas contam suas experiências
“Eu vou dormir, mas se lembre de me acordar”, disse um paciente adulto com Covid-19 (a doença causada pelo coronavírus) prestes a ser intubado em um dos leitos da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital São Benedito, em Cuiabá. Ele tinha chegado acordado na unidade e seguia estável até o momento. Mas ele piorou chegou a pedir para ir para ventilação mecânica, segundo a clínica geral Maíra Sanches, de 27 anos.
“Ele sabia que não ia conseguir porque estava muito cansado”, diz a médica ao . Depois de ser intubado, o paciente conseguiu ter uma evolução, acordar e conversar com a equipe de intensivas da qual Maíra faz parte. Contudo, ele teve outra piora. “O pulmão dele tinha um comprometimento muito grande. Ele teve outras complicações depois e acabou evoluindo com óbito”.
Vivências como a desses pacientes são o que marcam os profissionais de saúde que atuam na linha de frente da pandemia. A preocupação com os pacientes, que tem um medo da morte, é constante. Lidar com as perdas tem sido inevitável. Nesta terça (16), faz um ano que o primeiro caso foi confirmado em Mato Grosso.
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Enfermeira MIchelle Alonso, que atua agora na Santa Casa
A enfermeira intensivista Michelle Soubhia Alonso, 31 anos, diz que se lembra até hoje do primeiro paciente que atendeu com coronavírus. Na época, ela estava atuando na ala de UTI do Hospital Metropolitano, em Várzea Grande.
“Ele veio do interior, chegou intubado e estado grave. A gente começou a trabalhar com ele do zero, mas ele não conseguiu ter o processo de evolução e veio a óbito. É uma sensação de impotência muito grande”.
Já o fisioterapeuta Fábio Simões da Silva, 45 anos, esteve cerca de dois anos longe de uma UTI antes da pandemia. Assim que foi contratado pelo Hospital Universitário Julio Muller, ele teve que lidar com pacientes em estado grave que mal conseguiam respirar. “No momento em que começou a pandemia, não achava justo estar fora. Achava que poderia contribuir muito neste momento”, explica sobre o retorno.
Leitos lotados
Os profissionais de saúde ouvidos pela reportagem contam que todos os leitos dos hospitais onde atuam estão ocupados no momento. Em Mato Grosso, a rede de atendimento SUS para pacientes com Covid-19 está em colapso.
Até a sexta (12), eram 100 pacientes na fila de espera, segundo informações apuradas pelo . Eles detalham que há muita correria dos trabalhadores e o barulho das máquinas que ainda garante o último fio de vida dos pacientes.
“A doença age de forma diferente em cada paciente. É muito mais agressivo [com o coronavírus]. Por mais que se tente seguir um protocolo, muitos pacientes não respondem”
Fábio, Maíra e Michelle descrevem o quanto é frustrante lutar contra o coronavírus. “É uma doença muito ingrata. Por mais que se faça tudo, tem paciente que não se consegue reverter o quadro. Deixa frustrado toda a equipe. O paciente chega acordado, conversa com você, confia no que está fazendo e, muitas vezes, acaba em morte”, diz a médica.
“A doença age de forma diferente em cada paciente. É muito mais agressivo [com o coronavírus]. Por mais que se tente seguir um protocolo, muitos pacientes não respondem, agrava e acaba vindo a óbito. O que eu vi de morte… Nunca imaginei que passaria por uma situação como essa em 8 anos de profissão”, pontua a enfermeira.
A realidade dentro da UTI
Estar na linha de frente é também ter lidar com situações delicadas e a morte a todo o momento. Os profissionais relatam que, pelo espaço e correria, os pacientes que ainda estão conscientes conseguem assistir a tudo: a pessoa que melhora, a pessoa que agrava e precisa ter o respirador colocado pela boca, a pessoa que morre, o corpo que é ensacado pelos profissionais. A realidade é nua e crua.
Michelle conta também que os pacientes chegam ansiosos e nervosos e com muito medo de serem sedados e terem o tubo de respiração colocado pela garganta. “Todos têm receio de entrar em uma UTI. Acham que, partir do momento que entram em uma unidade de terapia intensiva, não vai sair mais. Não é bem assim que funciona”, pontua a enfermeira. Por isso, a equipe adota estratégias para tranquilizá-los e lhes dar mais segurança.
“Se não for isso, é ver ele sufocar na nossa frente. É algo que precisa ser feito”
Médica Maíra sobre o momento da intubação
A médica Maíra conta que, o momento de decidir pela intubação de um paciente, é a única opção que vai ter para salvá-lo. “Se não for isso, é ver ele sufocar na nossa frente. É algo que precisa ser feito. É difícil você tomar essa decisão sozinho. Normalmente, você conversa com alguns colega e ouvem opiniões. Quando se esgota toda as outras alternativas, chega a ser muito pior ver alguém sufocando na nossa frente, sabendo que tem uma opção e não escolhê-la”.
Nessa nova fase da pandemia, os profissionais relatam que se deparar com situações nunca pensadas antes. Uma delas é a de atender membros de uma mesma família ao mesmo tempo. Um estava na enfermaria, o outro na UTI, sem notícias um d’outro, seguindo sem saber se a pessoa está bem, viva ou morta. A enfermeira conta que já chegou a presenciar e atender caso de mãe e filho intubados em uma mesma sala de UTI.
O fisioterapeuta Fábio diz que também ficou marcado pelas mortes de mulheres grávidas, que precisaram fazer cesariana para salvar o bebê, e que não resistiram e morreram.
Infectados e vacinados
Apesar de estarem atuando na linha de frente de forma ininterrupta desde o início da pandemia, apenas Fábio contraiu a Covid-19. Foi no final de novembro do ano passado. O fisioterapeuta ficou 15 dias afastados do trabalho, após exame apontar que 30% do pulmão estavam comprometidos. Ele se tratou em casa e não chegou de ir para hospital.
Clínica geral Maíra Sanches conta que não se contaminou e já está imunizada
“Foi pavoroso [ter contraído a Covid-19]. A gente convivendo com o problema e vendo as evoluções dos pacientes. Aí só pensa em coisa pior e que não vai se curar com facilidade. Então, foi uma mistura de medo e pânico inicialmente”, diz.
A médica Maíra acredita que, se pegou a infecção, foi totalmente assintomática. “Na minha casa, todos fizeram exames de sorologia [sangue] e já identificaram anticorpos. Não cheguei a ter nenhum quadro de sintoma gripal, coriza, perda de paladar, nem nada”.
“Por incrível que pareça, eu não tive nada”, diz a enfermeira Michelle.
Fábio e Michelle fizeram parte dos testes do Instituto Butatan para a vacina Coronavac em ano passado. O fisioterapeuta tomou o placebo, e a enfermeira recebeu de fato imunizante. Os três relatam alivio em receberem as duas doses, mas apontam que continuam com os cuidados.
Impacto emocional
Por estarem lidando com a vida e a morte o tempo todo, os profissionais de saúde podem desenvolver casos de ansiedade e depressão. Já é conhecido relatos de trabalhadores que desenvolveram doenças mentais. O psicólogo ouvido pelo , em meados do ano passado sobre o impacto emocional nesse grupo, diz que pode ser comum encontrar sentimentos de medo, culpa, raiva e insegurança, além de comportamentos como mudança no sono, pânico e irritabilidade.
Fisioterapeuta Fábio da Silva: estresse emocional
A médica Maíra disse que, por já trabalhar em uma UTI, fazia acompanhamento psicológico antes do começo da pandemia. “É essencial para entender como se sente e como se consegue lidar com isso”. Contudo, ela viu colegas de profissão começarem a precisar de atendimento profissional por não saberem lidar com tantas perdas.
O fisioterapeuta Fábio também tem visto muitos colegas que ficaram ansiosos, depressivos e que chegaram a desenvolver crises de pânicos. Ele mesmo diz que se sente muito ansioso e acredita que o trauma de atuar na pandemia vai ficar e marcar. “Tudo isso causa um estresse emocional específico muito grande”. E brinca: “os psicólogos, daqui há alguns anos, vão ganhar bastante dinheiro”.
Para atuar na linha de frente, a enfermeira Michelle fez um sacrifício para manter o filho e os pais seguros – ela deixou de vê-los e cortou qualquer tipo de contato físico. “Eu coloquei minha família inteirinha em isolamento social 100%”. Foram cinco meses longe dos três, se encontrando a distância ou por videoconferência, sem abraço ou qualquer contato físico.
“Foi horrível. Eu chorava muito, principalmente quando ia vê-los. A sensação de não poder abraçar é horrível”, conta.
Emocionada, ela relata que teve a oportunidade de vê-los durante a baixa da pandemia. Mas voltou a deixar o filho com os pais há duas semanas, voltando com o isolamento total outra vez. O motivo foi o novo pico de casos e o colapso da rede de atendimento hospitalar do Estado.
“Estamos passando por tudo de novo. No momento, estou muito cansada. Estou bem exausta. Estou fazendo muitos plantões, mas o bom é que a gente tem perdas, mas também tem ganhos. Dois pacientes tiveram alta hoje [quinta do dia 11], direto para casa, isso nos estimula muito mais a perseverar. Em meio a toda essa guerra, existe uma esperança”, diz Michelle.